No dia 28 de junho foi divulgado o resultado da 6ª Chamada Pública de Apoio à Ciência do Instituto Serrapilheira. O Instituto é conhecido por atuar no financiamento e apoio à pesquisa e divulgação científica no Brasil. Na seleção, o projeto de duas docentes vinculadas à Universidade Federal de Santa Maria foi selecionado.
Na categoria Física, uma das selecionadas é a professora Dyana Duarte, do Departamento de Física do Centro de Ciências Naturais e Exatas (CCNE) da UFSM, com o projeto “Existem fases exóticas no diagrama de fases da Cromodinâmica Quântica?”. Outra docente contemplada foi Renata Rojas Guerra, do Departamento de Estatística, também do CCNE. Ela foi selecionada na categoria “Matemática”, com o projeto “Modelos dinâmicos para variáveis aleatórias duplamente limitadas: como prever indicadores de desenvolvimento sustentável medidos em taxas e proporções?”. Ambas receberão recursos do Instituto para desenvolver suas pesquisas pelo prazo de cinco anos.
Inovação para explicar a matéria do universo
Tudo ao nosso redor é formado por átomos – pequenas partículas que compõem aquilo que existe no universo, como pessoas, animais, objetos. Esses átomos são constituídos por partículas menores, chamadas prótons e nêutrons que, por sua vez, são formados por fragmentos ainda menores: os quarks e glúons. A teoria que descreve a interação entre essas partículas subatômicas, os quarks e glúons, e a forma como eles se unem para formar prótons, nêutrons e, por consequência, os átomos, é chamada de Cromodinâmica Quântica.
É nesse cenário, que parece ser um pouco difícil de visualizar, que está focado o projeto da professora Dyana, que busca entender as implicações de dados coletados recentemente sobre ondas gravitacionais na Cromodinâmica Quântica. A docente explica que as ondas gravitacionais foram propostas por Einstein há mais de 100 anos, mas apenas muito recentemente puderam ser detectadas a partir de combinações de grandes telescópios ao redor do mundo. “A análise dos dados provenientes dessas observações nos oferecem – pela primeira vez – a possibilidade do estudo da matéria em ambientes extremamente densos como, por exemplo, as estrelas de nêutrons e buracos negros”, comenta a docente.
Para estudar essa “matéria”, conceito que na área física se aplica a tudo aquilo que tem massa e volume, é a Equação de Estado que explica como ela responde a diferentes forças e condições, relacionando propriedades como pressão, volume e temperatura. “Para objetos como as estrelas de nêutrons, por exemplo, é a Equação de Estado que descreve, entre outras coisas, como a massa da estrela varia conforme nos aproximamos de seu interior”, afirma Dyana.
No entanto, mesmo que esse assunto seja tema de estudo há muito tempo, com os novos dados sobre ondas gravitacionais algo parecia estar errado. “O diagrama de fases da cromodinâmica quântica é objeto de estudo na literatura há mais de 50 anos. No entanto, somente a partir de 2016 os cientistas passaram a ter a possibilidade de confrontar os resultados de simulações computacionais e modelos efetivos com dados observacionais, como os de ondas gravitacionais. O mais intrigante, no entanto, é que os dados mais recentes de ondas gravitacionais impõem restrições à Equação de Estado que não podem ser explicados por nenhum modelo existente na literatura”, afirma Dyana. Ou seja, os modelos não funcionam como o esperado quando confrontados com dados de ondas gravitacionais. A docente explica que, até então, não se tinha com o que comparar, então a única possibilidade era a construção de modelos teóricos. “Esses modelos funcionam muito bem para explicar outras situações físicas, mas quando o assunto é a Equação de Estado da matéria densa, a partir dos dados de ondas gravitacionais, tudo sugere que é preciso incluir mais ingredientes” comenta.
Partindo deste entendimento, o objetivo do projeto proposto pela professora é fazer um estudo de modelos teóricos, levando em consideração os dados recentes, como os das ondas gravitacionais, verificando se, com novos ingredientes e outros indicadores, será possível obter uma Equação de Estado que satisfaça os vínculos observacionais. “A parte inovadora de nossa proposta consiste em verificar se, ao incluirmos ingredientes não usuais, ou seja, partículas estranhas (e diferentes interações), em nossos modelos, seremos capazes de satisfazer as restrições previstas pelos dados observacionais, indicando a presença de fases exóticas no diagrama de fases da matéria densa. Trata-se de um estudo teórico, e as fases exóticas dependem de como vamos considerar os vários tipos de interação entre as diferentes partículas que compõem o sistema”.
Parece complicado, mas se entendermos que o estudo se concentra na base de tudo aquilo que existe no universo, a dimensão da pesquisa se torna ainda maior. Dyana comenta que, sendo a cromodinâmica quântica uma teoria sobre a força que mantém os núcleos dos átomos coesos e, mesmo estando ela bem estabelecida e com conclusões importantes acerca da descrição de resultados experimentais, como os de colisores de partículas, ainda não se tem um entendimento claro sobre o porquê de os quarks estarem confinados nos prótons e nêutrons, formando os núcleos. “Compreender melhor a Cromodinâmica Quântica representa entendermos mais sobre a estrutura e a natureza da matéria que compõe o universo como um todo” explica.
O projeto tem prazo de execução de cinco anos. O valor dos recursos obtidos para cada iniciativa ainda está em aberto, já que, inicialmente, a chamada se propunha a financiar 10 cientistas com dotações entre 200 e 700 mil reais. No entanto, através de uma parceria com o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) e as Fundações de Apoio à Pesquisa de alguns estados, foi possível selecionar 32 propostas. Assim, os valores totais a serem destinados a cada uma estão sendo discutidos, mas estarão dentro do orçamento proposto.
No caso do projeto de Dyana, os recursos obtidos serão destinados para a aquisição de computadores com bom processamento para simulações numéricas; participação em eventos científicos nacionais e internacionais; visitas técnicas a colaboradores fora do Brasil; convite para pesquisadores fazerem visitas de curta duração à UFSM; e para realizar chamada(s) para bolsa(s) pós-doutorado. “O financiamento do Serrapilheira vai permitir maior mobilidade para os professores e alunos comunicarem seus resultados e conhecerem pesquisadores de diferentes instituições, através da participação em eventos da área, contribuindo para o desenvolvimento de nosso campo de atuação como um todo. Com isso, pretendemos formar jovens cientistas inspirados, qualificados e independentes, o que certamente irá fortalecer a área de Física Nuclear da UFSM e do Rio Grande do Sul de forma geral”, comemora a docente.
O projeto será desenvolvido pelo grupo Strong Interacting Matter in Extreme Environments (SIMEE) da UFSM, que conta com docentes, estudantes de pós-graduação e da Iniciação científica, além de professores da Universidad Nacional Autónoma de México, da Kent State University, e do Institute for Nuclear Theory, os dois últimos dos Estados Unidos. Se junta ao grupo uma rede de colaboração que envolve pesquisadores de diversas universidades do Brasil, como ITA, UERJ, UFSC, UFRJ, UNICAMP e UNESP, e de vários países como Alemanha, Argentina, Chile, Estados Unidos, Índia e México.
Projeto com impacto social
A preocupação com o desenvolvimento sustentável também está presente entre as pesquisas contempladas. A Agenda 2030 das Nações Unidas é um plano de ação para as pessoas, para o planeta e para a prosperidade, buscando equilibrar as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental. Para isso, foram traçados 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) que buscam, através de ações concretas, a promoção dos direitos humanos, da igualdade de gênero, dos cuidados com o meio ambiente, entre outros temas. Esses 17 ODS dividem-se em 169 metas e 231 indicadores – e é aqui que a professora Renata começa a pensar seu estudo.
Integrante do Stat UFSM, um programa de extensão do curso de Estatística que tem feito um trabalho de divulgação dos ODS, na perspectiva de popularizar a importância do tema e sua relação com a estatística, Renata, ao olhar a lista de indicadores, percebeu que a maior parte deles são proporções da população que possuem alguma característica de interesse e, como são objetivos a serem alcançados até 2030, há a necessidade de acompanhar esses indicadores ao longo do tempo. “Uma forma de fazer isso é unindo teorias de distribuições de probabilidade, que é um dos temas que estudei no doutorado, com conceitos de séries temporais, que são bem famosos na economia mas pouco explorados no contexto de desenvolvimento sustentável.”, afirma a docente.
Assim, o projeto de Renata tem como objetivo propor métodos para entender o comportamento e fazer previsões de dados que são duplamente limitados e que variam ao longo do tempo. Ou seja, dados que possuem um valor mínimo e um valor máximo. “Um exemplo é o percentual de pessoas que têm acesso ao saneamento básico. Pode ser 0% na pior situação e, no melhor caso, vai ser 100%, então nesse caso estamos tratando de dados entre 0 e 100.”, explica.
Neste primeiro momento, o objetivo da iniciativa é contribuir para a gestão dos recursos hídricos no contexto da geração de energia. A professora destaca a importância do tema a partir da grande capacidade do Brasil para a geração deste tipo de energia, que é uma energia renovável. “Nós já fizemos um primeiro trabalho focando nas proporções de volume útil de 11 usinas brasileiras. Ao fazer previsões do volume útil dos reservatórios a gente pode fazer um planejamento para as situações em que esses níveis estarão muito baixos e evitar ao máximo o acionamento das termoelétricas, que, além de terem um custo maior, poluem mais”, completa.
Os primeiros resultados do projeto já foram premiados e Renata avalia que o próximo grande desafio é chegar nas indústrias, conversar com empresas e instituições ligadas ao setor energético e mostrar que essas novas metodologias podem ter utilidade para o setor. A professora também se diz animada com a iniciativa e com o potencial que enxerga na pesquisa. “Uma coisa que me empolga muito com esse projeto é a sua versatilidade e o potencial de transpor as barreiras da matemática através de diferentes tipos de aplicação. Os ODS abrangem diversos problemas ligados ao desenvolvimento sustentável”, relata. A professora ainda comenta sobre a possibilidade da utilização do modelo para pesquisas futuras. “Ainda no tema de geração de energia, podemos desenvolver novos métodos para prever o fator de capacidade de usinas eólicas e assim contribuir para a gestão de recursos ligados a esse tipo de energia. Além disso, também podemos trabalhar com taxas de mortalidade e auxiliar no monitoramento de gases do efeito estufa. De fato, uma vez propostos os modelos e fornecidos os códigos de computador, qualquer pesquisador ou cientista de dados poderá usá-los para analisar dados com essas características.” comenta Renata.
Com o recurso que será recebido da chamada, a equipe do projeto, que é composta por pesquisadores e estudantes de universidades brasileiras e estrangeiras, como UFSM, USP, da UFRGS e instituições da Suécia e Colômbia, pretende custear bolsas de iniciação científica, mestrado e pós-doutorado. Além disso, o restante do valor será aplicado em taxas para publicação de artigos, na divulgação de resultados em eventos e na aquisição de equipamentos, como computadores de alto desempenho, para realizar as simulações computacionais e garantir que os modelos funcionem adequadamente.
Jovens pesquisadores e mulheres na ciência
As duas professoras contempladas concordam ao afirmar que editais como este são ótimas oportunidades para profissionais que estão iniciando a carreira. Dyana comenta que esse tipo de chamada é um incentivo para jovens recém contratados, que, em geral, passaram por períodos de pós-doutorado em diferentes instituições, a continuarem desenvolvendo pesquisa de ponta nas universidades que passam a integrar permanentemente. O mesmo ponto de vista é trazido por Renata. “Eu vejo esta chamada como a mais importante para jovens cientistas brasileiros nas áreas de ciências naturais, matemática e ciência da computação. Ao tratar de pesquisas acadêmicas, a maior parte das chamadas é voltada para pesquisadores com muitos anos de carreira e alta produtividade, então o Instituto Serrapilheira nos dá uma grande oportunidade de ter autonomia para atuar em posição de liderança de um grupo de pesquisa”, reflete. Dyana acrescenta, ainda, sobre a importância de estar entre os contemplados principalmente fora do eixo Rio-São Paulo, já que, estar distante desses grandes centros dificulta, muitas vezes, a obtenção de recursos para a participação em congressos da área, viagens técnicas e aquisição de equipamentos.
Outro ponto em que as pesquisadoras concordam é em relação à importância das mulheres no meio científico. Recentemente, Renata ajudou a desenvolver um estudo que mostra a baixa proporção de mulheres fazendo cursos de graduação nas áreas de matemática e estatística e essa desigualdade aumenta ao longo da carreira, de acordo com os níveis alcançados, como mestrado ou doutorado. “No caso da chamada que eu participei, apenas 17% dos candidatos da matemática eram mulheres e eu fui a única que passou para a segunda fase. Esse é um padrão que se mantém em todas as chamadas. No ano passado, por exemplo, esse percentual foi de 14% e não haviam mulheres na segunda fase. É importante olhar para isso, porque o Serrapilheira faz um ótimo trabalho de incentivo à diversidade e à participação feminina, mas eu percebo que há a necessidade de fazer um trabalho de base, incentivando as meninas a atuarem nessa área desde o ensino médio e implementando estratégias que estimulem a permanência na universidade”, afirma a docente.
Dyana destaca duas características do edital que pensa serem importantes para contribuir com a inclusão de mulheres na ciência e com uma maior diversidade na pesquisa. A primeira delas é a extensão de dois anos no prazo para mulheres que tiveram filhos durante o período considerado pelo edital como elegível para concorrer à chamada e a segunda é a destinação de recursos extras para a formação de pessoas de grupos sub-representados. “Esses avanços são muito significativos na busca pela igualdade de gênero e diversidade nos grupos de pesquisa no Brasil. Pessoalmente, me sinto muito satisfeita por ter sido contemplada, e inspirada pela possibilidade de desenvolver este projeto juntamente com nosso grupo na UFSM”, finaliza Dyana.
A chamada pública
A sexta chamada do Serrapilheira destina-se ao financiamento de cientistas em início de carreira, que estejam interessados em grandes perguntas de suas áreas de atuação. Nesta edição foram 249 propostas inscritas e 32 pesquisas selecionadas, das áreas de ciências naturais, matemática e ciência da computação. Os projetos escolhidos receberão entre 200 mil reais e 700 mil reais cada, a serem distribuídos ao longo de cinco anos. A seleção, em duas etapas, é realizada por especialistas de renome em seus campos de conhecimento.
Texto: Mariana Henriques, jornalista
Arte de capa: Daniel Michelon De Carli
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