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Em entrevista, Luís Tomás Domingos fala sobre impactos do racismo na construção do conhecimento

Entre os dias 15 e 17 de outubro, o Programa de Pós-Graduação das Ciências Sociais da UFSM, em conjunto com o coletivo de estudantes negros do curso, recebeu o professor Luís Tomás Domingos, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), instituição sediada no município de Redenção (CE). Na ocasião, ele ministrou o seminário Diálogos Epistemológicos entre Brasil e África, que tratou da epistemologia construída no Brasil sobre o conhecimento africano e perspectivas de avanços nesta área de ensino. Em entrevista concedida à Agência de Notícias da UFSM, o docente ampliou a discussão do seminário, trazendo perspectivas sobre os impactos do racismo na construção epistemológica brasileira.

O professor Luís Tomás Domingos ministrou seminário no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSM

Natural de Moçambique, Domingos é doutor em Antropologia e Sociologia da Política pela Universidade de Paris 8. Ademais, possui pós-doutorado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e formação em Filosofia no Seminário Maior de Santo Agostinho, de Moçambique, além de integrar como docente o Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia da UFC e Unilab, o Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas da UFC, o Bacharelado em Antropologia e o curso de Sociologia da Unilab. É também membro da Rede Internacional Interdisciplinar de Pesquisadores em Desenvolvimento de Territórios (Rede-Ter) e da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter). Afora diversas publicações de artigos e estudos, Luis Tomas Domingos também possui quatro livros de sua autoria publicados.

Com experiência nas temáticas de identidades socioculturais e políticas, de religiosidade africana e de matriz africana no Brasil, e de estudos africanos e afrodescendentes, o professor Domingos compartilhou seus conhecimentos sobre epistemologia durante o seminário. No decorrer dos três dias de evento, discutiu-se sobre epistemologias africanas, ciências sociais e as relações epistemológicas entre o Brasil e a África. Somando-se aos encontros, no dia 15 houve uma apresentação artística do projeto de extensão Mojubá: Danças Populares Brasileiras, coordenado pelo professor Jesse Cruz, da Licenciatura em Dança da UFSM.

Com a sala cheia, o seminário propôs reflexões acerca da maneira que a academia brasileira organiza a construção do conhecimento em torno da cultura africana. A fim de ampliar essa reflexão, a Agência de Notícias conversou com Domingos acerca da temática discutida durante o evento. A entrevista pode ser conferida abaixo.

Que papel leis, como a Nº 10639/2003, que prevê obrigatoriedade de ensino de história sobre a cultura africana no currículo escolar, desempenham na formação cultural e histórica dos brasileiros?

Em 2003, pela Lei 10.639/2003, entra a obrigatoriedade do ensino da história da cultura africana nos currículos disciplinares. Ou seja, até 2003, quem fez doutorado e mestrado, por exemplo, não sabe nada da África. Esse é o fato. Então, a imagem que se construiu sobre a África é uma África criada. Safari, savana, fome, etc. Essa é a visão passada pela televisão brasileira. Nesse sentido, leis como a de 2003 servem para ampliar os horizontes da sociedade sobre um continente que apresenta uma diversidade de histórias, culturas e ensinamentos muito rica.

Contudo, a lei sobre o ensino da África, da cultura africana e afrodescendente nas instituições acadêmicas não está sendo cumprida, porque as pessoas ainda são resistentes. A lei está lá, mas para ser cumprida as pessoas precisam aderir, ter consciência e algumas pessoas ainda estão fechadas no mundo colonial.

E por que o senhor acha que isso acontece ainda?

Por causa dos estigmas do processo colonial. As pessoas não conseguem sair do seu mundo de superioridade, do mundo em que eles veem o afrodescendente como uma pessoa que não pensa. Então dizer que hoje se deve aprender a história [da cultura africana] é uma coisa do outro mundo, é mexer com as verdades que estas pessoas interiorizaram. Isso é um racismo silencioso. “Eu não quero estudar esse primitivo”, no fundo isso é racismo. Então o que está em jogo é tentar convencer o professor/pesquisador de que é preciso ver as categorias epistemológicas que foram, ao longo dos anos, utilizadas para o ensino.

Durante o seminário, houve uma apresentação do projeto de extensão Mojubá: Danças Populares Brasileiras

Esse é o desafio que estamos trabalhando no seminário: dizer que aquilo que você estudou como categoria está deturpado. O seminário de Diálogos Epistemológicos entre África e Brasil é necessário para desmistificar conceitos de algumas categorias que estão aplicadas na academia, que precisam ser modificados a partir das pesquisas dos novos conhecimentos, ou seja, da descolonização do pensamento. A academia brasileira possui pressupostos eurocêntricos que trazem categorias coloniais. E é um dever de um acadêmico, seja professor, aluno, ou pesquisador, procurar entender a base dessas categorias e que função elas têm na sociedade, porque muitas vezes, em vez de fazer avançar as nossas ciências, elas atrapalham. Isso porque são categorias que estão ultrapassadas, quando consideramos a dinâmica social de hoje em dia.

Aqui no Brasil, existe a falsa ideia de que não há autores africanos para estudar como referência acadêmica. O foco permanece em estudos provenientes de autores da Europa ou dos Estados Unidos. O que o senhor pensa sobre isso?

Existem autores africanos. Falta a vontade intelectual de estudar esses autores, porque para conhecer você tem que se esforçar, ler, estudar outra língua. Muitas publicações estão em inglês e francês, por exemplo. Então, é preciso estar disposto a abrir o diálogo com a pessoa/pesquisador que você não conhece. Para quem não tem vontade de ampliar seus horizontes, é difícil escapar do pensamento colonial.

Uma civilização que é racista é moribunda, um intelectual que reproduz o racismo no ensino é racista e menos intelectual. Você [docente] está estudando para ensinar as verdades aos alunos. E nós, os professores, pecamos ao reproduzirmos a biblioteca colonial. Infelizmente é verdade. Mea-culpa [risadas].

Ampliando nossa conversa para além do âmbito acadêmico, quais problemáticas o senhor enxerga que existem atualmente na discussão sobre desigualdades sociais aqui no Brasil?

Para compreender a desigualdade social, primeiro precisamos voltar à história, para entender como o Brasil foi construído, para, a partir dessa história, a gente conseguir observar onde falhamos e como reparar essa história falhada. A gente só entende a desigualdade quando a gente entende a questão histórica. A partir dessa compreensão, torna-se possível fazer os reparos necessários do passado. Mas, para isso, precisa haver mobilização, tem que ter encontros como o de hoje [15 de outubro], até que as pessoas tenham consciência.

A Unilab, onde o senhor trabalha atualmente, tem desempenhando um papel muito importante na produção e na divulgação do conhecimento africano, servindo de exemplo para outras instituições. Gostaria que o senhor comentasse sobre como a Unilab atua nessa frente.

O que está em jogo na Unilab é a noção de internacionalização e interiorização dos conhecimentos. Conhecimento internacionalizado significa trazer esses conhecimentos africanos, enquanto interiorização é conhecer os conhecimentos internos do Brasil. Então, essa conjugação é perfeita. A gente desmistifica o mito criado sobre a África, e também desmistifica o mito criado sobre o jeito do interior. Assim, nós criamos uma nova perspectiva. Algumas coisas de lá [África] podem acrescentar aqui e algumas coisas daqui que podem acrescentar lá. Esse é o papel da união.

Formamos estudantes que, quando terminam seus cursos, muitos são professores da rede pública. E eles vão traduzindo a literatura africana, vão traduzindo conhecimentos africanos. Tem o papel de desmistificar o que nós chamamos de epistemologias do norte, e trazer epistemologias do sul global, do Boaventura Afonso. Este pensador fala dessa epistemologia do sul global, que precisa ser trazida para a academia, porque o sul global tem conhecimento. Mas essa mudança de perspectiva não é fácil, porque tem algumas pessoas que ainda não acreditam. São anos, séculos do ensino da falsidade das histórias, por isso, vai levar tempo para desmistificar essa visão de ensino.

Texto e fotos: Laurent Keller, estudante de Jornalismo e bolsista na Agência de Notícias

Edição: Lucas Casali

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