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Hostilidade e Preconceito marcam a vida de mulheres companheiras de presos no Brasil

O que leva algumas mulheres a manter relacionamentos com homens privados de liberdade, mesmo enfrentando humilhações e preconceitos? Esse foi o ponto de partida da pesquisa de Rayssa Brum, defendida em 2023 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSM, que buscou investigar as experiências e as dificuldades de companheiras de detentos.  

Para o desenvolvimento da pesquisa, Rayssa realizou entrevistas com 12 mulheres que estavam em relacionamento, do tipo união estável ou casamento, com homens privados de liberdade. As entrevistadas tinham idade entre 20 e 41 anos, e residiam em diferentes estados (sete em São Paulo, duas no Rio Grande do Sul, uma em Goiás, uma em Mato Grosso do Sul e uma em Santa Catarina). Entre elas, 10 são mães, das quais duas têm filhos que não são fruto de seu relacionamento atual. Já em relação ao perfil dos homens encarcerados, três estavam presos pela primeira vez e os outros nove já haviam cumprido pena uma ou duas vezes antes do período da pesquisa, que foi realizada entre os meses de junho e julho de 2020.

Para encontrar as entrevistadas, a autora publicou um convite à participação no estudo em dois grupos no Facebook voltados a familiares e companheiras de homens privados de liberdade. Os grupos foram criados para trocas de informações sobre a logística de visita à prisão e demais questões particulares às vivências de quem tem um parente/companheiro em cárcere privado. 

“A gente não tem apoio de ninguém”

Em um artigo publicado na Revista de Psicologia da Pontificia Universidad Católica del Perú (PUCP), a pesquisadora expõe a hostilidade enfrentada por mulheres que têm companheiros encarcerados. Mesmo sem qualquer envolvimento em crimes, elas sofrem com o tratamento hostil em suas rotinas. Uma entrevistada, por exemplo, compartilha a humilhação de ver os lanches que traz para o marido despedaçados pelos agentes penitenciários: “eles [agentes penitenciários] reviram toda a comida, parece que eles estão com ódio da comida. Misturam tudo como se fosse lavagem. Enfiam garfo e faca [no bolo]. A gente leva bolo, eles despedaçam todo o bolo. Eu não desejo isso nem para o meu pior inimigo”’, desabafa. Outra mulher descreve o constrangimento de passar pelas revistas íntimas: “Na revista íntima tem que ficar tirando a roupa, o que é humilhante, chato. Você tira as roupas na frente da agente, e ainda tira a roupa na frente de outras pessoas”, conta, expondo a experiência vexatória de cada visita. 

Os depoimentos destacam a urgência da elaboração de políticas públicas voltadas a essas mulheres que, de certa forma, também vivem o cotidiano da prisão. Para Rayssa, “é de extrema importância que as relações familiares e conjugais sejam incluídas nas discussões que permeiam o sistema prisional brasileiro, nos âmbitos jurídico e de saúde”.

No dia 18 de outubro deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) votou a favor (seis votos contra quatro) da proibição das revistas íntimas em visitantes de presos. Contudo, a decisão pode ser alterada, pois o ministro Alexandre de Moraes propôs levar o caso a um julgamento presencial, marcado para dia 13 de novembro. Caso se mantenha a decisão favorável à proibição, as inspeções das partes íntimas dos visitantes serão proibidas. No lugar desta prática, a indicação é que se use scanners corporais, esteiras de raio-X e detectores de metais.

Por mais que uma medida como essa represente um importante avanço para a dignidade de familiares de pessoas presas, ela ainda não consegue solucionar o comportamento preconceituoso com o qual a sociedade e alguns agentes penitenciários tratam as mulheres que frequentam os presídios. Segundo narrado por elas, em dia de visita é preciso ser feita uma preparação prévia ao momento de, enfim, encontrar seus companheiros. Elas precisam conseguir liberação do trabalho para estarem livres nos dias de visita; muitas vezes têm que se deslocar de uma cidade para outra para chegar ao presídio; fazer compras e preparar receitas com antecedência para colocar nos jumbos (pacotes enviados aos presos, com itens de higiene, roupas, produtos de limpeza e alimentos); adquirir roupas adequadas às exigências de vestimenta das cadeias; e pegar transporte durante a madrugada para chegar ao horário de visita. Tudo isso, muitas vezes, com filhos pequenos acompanhando, já que essas mulheres não costumam contar com redes de apoio. Geralmente, as visitas são permitidas duas vezes por semana, em horário comercial, mas a logística varia conforme as regras de cada unidade prisional.

Rayssa Brum explica que é comum que mulheres casadas com detentos modifiquem toda a organização de suas vidas em prol da manutenção do relacionamento e dos cuidados com o companheiro. É habitual que ela abandonem o emprego formal para buscar trabalhos com horários mais flexíveis, justamente para que possam visitar os maridos e estar disponíveis para atenderem as ligações nos horários permitidos aos detentos. Ao mesmo tempo, as despesas da família aumentam, com gastos adicionais nas viagens à prisão e com a compra de itens para o jumbo.

A partir dessa lógica, a pesquisadora comenta que a literatura da área frequentemente classifica essas mulheres como “vítimas colaterais” do sistema penal. Ela menciona o conceito de “prisionização secundária”, cunhado por pela socióloga Megan Comfort, que descreve o impacto psicológico e social sobre essas mulheres, que, em certo sentido, acabam cumprindo uma pena ao lado de seus companheiros encarcerados.

Além da exaustão imposta pelas mudanças no cotidiano após o encarceramento de seus companheiros, as entrevistadas também enfrentam hostilidades e dificuldades nas suas rotinas, como relatado a seguir:  

“Agora eu to indo de táxi [ao presídio], mas eu já fui de ônibus e, se eu pego um ônibus com uma sacola, as pessoas te olham assim: ‘aí, já vai pra cadeia’”.
‘’Ficou tudo para mim, tudo, tudo. Não tem mais aquela pessoa com quem eu vou dividir a vida. Eu que tenho que sair para trabalhar, voltar pra casa, cuidar das minhas filhas. Na vida particular mudou tudo, não tem mais ninguém que eu possa dividir mais nada. Eu passei a ser o homem da casa, pai e mãe, tudo.’’
‘’A gente não tem apoio de ninguém nessa hora. Todo mundo vira as costas, principalmente a família. (..) Já era pra eu ter terminado a faculdade, mas aí eu não consegui, porque era ele que ficava com as meninas pra eu poder ir pra faculdade à noite, era só ele que cuidava. Eu não tenho quem realmente me apoie nessa parte de cuidar das minhas filhas.’’

Por conta do abandono social, o que costuma restar a essas mulheres é a amizade umas com as outras, já que compartilham das mesmas dores e rotinas, como conta uma das esposas: “As minhas amizades todas acabaram, eu só converso com as meninas, que são as mesmas que visitam os companheiros também”. Nesse sentido, pesquisas como a de Rayssa servem para trazer à tona temáticas que costumam permanecer escondidas, como é o caso das vivências de mulheres companheiras de detentos. A pesquisadora acredita que a Psicologia pode refletir com mais propriedade sobre o assunto e divulgar conhecimentos acerca de tais vivências.

Por que elas continuam casadas com eles?

Essa pergunta pode ter surgido enquanto você lia os relatos das companheiras de homens privados de liberdade. Rayssa Brum comenta que, em outros artigos, como este, explorou-se a qualidade do vínculo conjugal entre elas e seus parceiros encarcerados. Essa análise é feita com base na avaliação fornecida pelas próprias participantes da relação, neste caso, as esposas. Surpreendentemente, o estudo revelou uma alta qualidade conjugal. Segundo Rayssa, isso se deve, em grande parte, ao foco no futuro e à esperança de um recomeço após a prisão, além de uma crença na mudança do parceiro. “Esse último aspecto apareceu bastante nos meus resultados. Muitos dos companheiros das participantes possuíam trajetórias de vida marcadas pela violência e/ou pelo crime, eram reincidentes, muitos também possuíam penas bastante longas. No entanto, havia uma crença por parte das participantes de que o amor e o cuidado que elas direcionavam aos homens fariam com que eles saíssem do ‘mundo do crime'”.

Durante o período de encarceramento, as entrevistadas relatavam que seus esposos adotavam comportamentos diferentes, muitas vezes mostrando-se mais atenciosos e cuidadosos com elas e com a relação. De forma paradoxal, isso fazia com que as mulheres vissem a prisão de seus companheiros sob uma perspectiva positiva. Essa percepção foi compreendida como um mecanismo psicológico adotado pelas entrevistadas para romantizar a relação, ainda que em contextos complexos, como os já citados. 

“Em uma sociedade marcada por valores patriarcais, ter um relacionamento amoroso é uma forma de subjetivação da mulher, de modo que estar em uma relação é visto como uma forma de legitimação feminina”, elucida Rayssa. Portanto, é preciso pensar nas relações destas pessoas de uma perspectiva mais ampla, e não como se fossem parte de uma realidade paralela. Afinal, “a prisão está na sociedade e a sociedade está na prisão, o que quer dizer que a prisão sustenta e reproduz lógicas da sociedade mais ampla, dentre as quais aqui consideram-se os papéis de gênero”, reforça a pesquisadora. Logo, os papéis de gênero permanecem inalterados mesmo em relações afetadas pelo encarceramento: as mulheres continuam assumindo a responsabilidade das atividades da casa e o cuidado afetivo dos filhos, familiares e do marido, enquanto essas tarefas não recaem sobre os homens, ainda mais quando estão no contexto prisional.

Essa desigualdade se torna ainda mais evidente quando o papel de apoio familiar é analisado. Segundo Rayssa, há uma clara diferença no suporte recebido por homens e mulheres quando são encarcerados. No caso de mulheres privadas de liberdade, estudos brasileiros indicam que elas frequentemente são abandonadas pelos companheiros. A maior parte dos visitantes das detentas são mães, filhas e amigas, enquanto os homens representam uma pequena parcela, reforçando, mais uma vez, a reprodução dos papéis de gênero historicamente normalizados pela sociedade.

Outros fatores que contribuem para a permanência no relacionamento são a autonomia e a liberdade que as esposas passam a ter com a prisão dos companheiros, uma vez que muitas delas eram inferiorizadas dentro da relação ou até mesmo abusadas psicológica e fisicamente. O encarceramento permite que elas passem a ocupar uma posição de maior controle e decisão em suas vidas: “Então, embora o cárcere separe os casais, ele possibilita a continuidade dos relacionamentos, ao coibir comportamentos que, anteriormente à prisão, os atravessavam de forma importante. Não se quer ocupar esse espaço, não se quer ter um companheiro preso, mas, ao mesmo tempo, prefere-se que esses homens estejam ali do que em outros espaços”, explica Rayssa Brum.

Como resultado da sua investigação, a pesquisadora demonstrou a influência dos papéis de gênero na manutenção de relacionamentos entre mulheres livres e homens privados de liberdade, o que reforça a necessidade de se pensar em iniciativas públicas que promovam espaços de reflexão acerca do tema, para que as esposas dos detentos tenham a quem recorrer para pensar formas de manter, ou não, a relação, conforme comenta a psicóloga: ‘’salienta-se a necessidade de políticas públicas e ações intersetoriais que ofereçam espaços de reflexão sobre gênero, famílias e relações conjugais para homens e mulheres, com vistas a fornecer suporte tanto para a manutenção das relações, quanto para busca de outros caminhos de vida, quando suas relações não se mostrarem saudáveis.’’

Próximos passos da pesquisa

O artigo “Experiências de mulheres companheiras de homens presos dentro e fora das prisões” é fruto da dissertação de mestrado defendida por Rayssa Brum em 2023, sob orientação da professora Caroline Pereira (UFSM) e coorientação de Luciane Smeha (UFN).  Clique aqui para acessar o texto da dissertação de Rayssa na íntegra.

Atualmente, Rayssa é estudante do doutorado na UFSM e segue estudando sobre conjugalidades, mas seu enfoque está sendo em casais homoafetivos e processos de psicoterapia de casal.

 

Texto: Laurent Keller, acadêmica de Jornalismo e bolsista da Agência de Notícias
Arte: Daniel Michelon De Carli, designer

Edição: Luciane Treulieb, jornalista

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