Já imaginou viver diariamente sem a garantia de que você pode morar em sua residência? Há cinco anos comunidades que habitam próximas aos trilhos férreos de Santa Maria convivem com essa insegurança, devido à falta de amparo social e às indefinições na legislação em torno do que seriam locais apropriados ou não para residir nas imediações das vias por onde passam os trens na cidade. Na tentativa de amenizar as angústias dessas famílias, o Laboratório de Mobilidade e Logística (LAMOT), vinculado ao Curso de Engenharia de Transportes e Logística da UFSM campus Cachoeira do Sul e ao Centro de Tecnologia no campus sede da UFSM, por meio do Observatório de Direitos Humanos (ODH), se uniu à luta da Associação de Moradores Próximos à Ferrovia (AMPF) pelo direito à moradia, a partir do desenvolvimento de uma metodologia para guiar este tipo de situação.
A necessidade de se fazer uma análise aprofundada sobre as regiões próximas aos trilhos decorre das incoerências em relação à distância que cada residência deve estar dos trilhos, apresentadas pela concessionária da malha ferroviária do Rio Grande do Sul, em seus pedidos de reintegração de posse, solicitados à Justiça desde 2018. Isso porque, de acordo com informações do LAMOT e com a Lei Federal n° 6.766/79 (modificada pela Lei n° 14.285/21), toda ferrovia possui uma área de domínio correspondente a, no mínimo, 15 metros de distância para os dois lados da via férrea, a partir do eixo central do trilho (conforme indica a figura abaixo), mais 15 metros de área não-edificante, também para ambos os lados. O grande problema é que, por haver a possibilidade de ser de tamanhos variáveis, as áreas de domínio das regiões próximas aos trilhos de Santa Maria possuem valores muito discrepantes, variando de 15 a 100 metros, por exemplo, como é o caso da residência do presidente da AMPF, Pablo Rocha, que reside a 100 metros de distância dos trilhos, mas mesmo assim lhe foi solicitada a remoção da moradia. Assim como ele, centenas de famílias enfrentam o impasse de residir a uma distância dita a elas como inadequada da via férrea, ainda que não haja justificativas bem estruturadas para determinar essas medidas variáveis.
Mas por quais motivos isso acontece? Primeiro, é preciso entender os conceitos de área de domínio e área não-edificante. O primeiro termo é usado para designar o espaço destinado à operação de ferrovias e construção de novas malhas ferroviárias ou demais estruturas necessárias, como pátios de manobra. Portanto é de utilidade pública, podendo ter seu tamanho variável, de acordo com cada legislação específica. E, na presença de taludes (terrenos em declive), a faixa de domínio precisa abranger, ao menos, 10 metros após os limites do bordo do talude (que se refere à crista de corte, quando está acima da ferrovia, ou ao pé de aterro, quando é em cota menor à ferrovia, segundo explica o coordenador do LAMOT, Alejandro Padillo. Nesse sentido, não é permitido haver, nessa área, casas, estabelecimentos agrícolas e comerciais, nem instalação de redes elétricas, hidráulicas, entre outros. Somente o Estado e a concessionária da ferrovia podem fazer a manutenção das faixas de domínio. Logo, qualquer ocupação destes locais deve ser autorizada por estas entidades.
Vale destacar que a faixa de domínio pode ter tamanho variável por causa de limitações do terreno, do urbanismo da região, da presença de córregos e rodovias, ou dos diferentes níveis de perigo que a via férrea oferece para cada região, já que há locais em que o trilho está posicionado de maneira menos segura, como quando ele passa em áreas mais altas que seus arredores, por exemplo. Contudo, os aspectos determinantes para definir as distâncias de cada área de domínio não são claros. Por isso o LAMOT está estudando as regiões de Santa Maria, para estabelecer uma metodologia objetiva e genérica para orientar a realização de estudos técnicos, como o que está sendo feito para a via férrea de Santa Maria, de acordo com o coordenador do Laboratório.
Já as áreas não-edificantes, que possuem uma largura de 15 metros, servem para garantir a possibilidade de eventuais expansões da rede ferroviária, além de servir de apoio para operações da concessionária. Neste espaço também não é permitido construir edificações ou estruturas permanentes, mesmo que o local seja de propriedade privada (exceto com termo de permissão especial de uso por parte do órgão correspondente). Porém, na área não-edificante já são permitidas atividades agrícolas, industriais ou comerciais, bem como redes elétricas e de dados.
Um problema social
É a partir desse cenário de indefinições que a concessionária da malha ferroviária está reivindicando pelos terrenos próximos aos trilhos, desde o bairro Camobi até o distrito da Boca do Monte. Contudo, há aproximadamente três mil pessoas residindo nessas localidades há anos, o que dificulta o processo de retirada das casas das regiões, porque, além da moradia em si, as famílias têm suas vidas estruturadas nas proximidades dos trilhos, como relata Pablo Rocha: ‘’tem um outro lado da história, porque essa questão envolve não só moradia, mas também educação, por exemplo. Quantas crianças estão envolvidas nesta situação? Quantos idosos? Quantas pessoas com deficiência (PCD)? Existe toda uma questão social já consolidada; o PCD que mora aqui se trata no posto de saúde da localidade, por exemplo. Para onde ele vai?”.
Por conta dessas complicações, os processos de autoria da concessionária não foram concluídos até hoje. No momento, as tramitações estão suspensas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), justamente para que a empresa, a pedido do DNIT (órgão responsável pela elaboração de análises ligadas ao Sistema Federal de Viação), realize um estudo técnico acerca das distâncias mínimas que cada casa deve ter dos trilhos e, posteriormente, verifique as residências que precisarão ser removidas. Porém, a assessoria jurídica da AMPF informou não ter conhecimento acerca do andamento desse estudo, que não apresenta ainda previsão para ser finalizado. Neste meio tempo, centenas de famílias vivem em meio à insegurança, sem saber se poderão seguir residindo em suas casas.
Nesse sentido, o presidente da AMPF explica que o estudo feito pela UFSM auxiliará a comunidade a obter informações sobre a questão das distâncias das residências dos trilhos mais rapidamente, para que dessa forma se mobilizem conforme os resultados apresentados. Para isso, o coordenador do LAMOT explica que há várias fases até que se chegue à conclusão do estudo. “Primeiro, há o desenvolvimento do tema, com entrevistas com os atores envolvidos (moradores, concessionária, especialistas na área ferroviária) e pesquisas bibliográficas e documentais. A partir disso, selecionam-se os aspectos a serem analisados e ponderados. Na sequência, se avaliam os critérios com medições em campo e análise de projetos da infraestrutura. Finalmente, todos esses valores se agregam com uma técnica de análise multicritério, e os resultados são representados de forma georreferenciada”, explica.
Qual o perigo de morar perto de uma via férrea?
Se por um lado a comunidade deseja e luta para permanecer em suas residências, por outro, a insegurança é constante. Pablo Rocha reconhece e ressalta a importância do transporte ferroviário, tanto em relação à logística do meio quanto por conta de seus benefícios para o meio ambiente. Somado a isso, uma moradora da região Camobi, Niceia Papalia, comenta sobre os incômodos de morar tão perto de uma via férrea: ‘’claro que é perigoso [morar próximo à ferrovia], às vezes, os trens vêm de madrugada e é um barulho tão forte; tudo treme. Na minha casa parece que vibra tudo, daí a gente tem medo do que possa acontecer. [Felizmente], os trens não passam tão seguidamente, é umas quatro vezes por semana no máximo.’’
Ainda que passem com pouca frequência, Alejandro Padillo explica que há diversos riscos de acidente ao morar perto dos trilhos:
- descarrilamento e tombamento do trem;
- atropelamento por trem;
- colisões do trem com veículos nos cruzamentos em nível ou locais adjacentes à via;
- deslizamento de terras nas moradias;
- poluição sonora (ruído) em horários de passagem do trem;
- despejamento de carga perigosa, caso haja acidente ferroviário;
- prejuízo à drenagem das águas ao longo ou através da ferrovia, ou alagamento das moradias devido à obstrução das obras de drenagem.
Além destes problemas, o coordenador do LAMOT comenta que morar nas proximidades dos trilhos pode levar a uma segregação social e econômica dessas comunidades, em consequência do efeito barreira que a via férrea causa no território, por causa das dificuldades de cruzamento dos trilhos.
Tais problemas não são exclusivos daqui. Para se ter uma ideia, a ferrovia que perpassa Santa Maria está presente em, ao menos, outras 35 cidades do estado, onde os mesmos tipos de impasse estão presentes. Padillo explica que tais questões são comuns de ocorrer em regiões próximas aos trilhos. Logo, o governo deveria garantir que as pessoas não morassem nesses locais, por meio da disponibilização de moradias dignas, já que não há garantia de segurança verdadeira para aqueles que residem nessas localidades, exceto em casos específicos em que obras de infraestrutura consigam elevar a segurança, mas o coordenador do LAMOT destaca que isso é raro.
Em meio aos perigos de residir perto de uma via férrea, moradores relatam ainda outros problemas: ‘’o que eu mais penso é que a gente não pode investir, não pode fazer nada [na casa], porque quando vê a gente investe um dinheiro e precisa sair em seguida. E isso se prolonga há anos já. A gente não tem esgoto, não tem água. Fica um impasse, que ninguém mexe nem de um lado, nem do outro’’, relata o morador da região de Camobi Eneias Papalia, acerca da falta de controle sobre o futuro que amedronta não só ele, mas todas famílias entrevistadas para esta reportagem, como é o caso de Ana Lúcia do Nascimento, que reside na mesma região que Papalia há 27 anos: ‘’o esgoto das casas cai tudo aqui, daí eu não consigo abrir nem a janela. Tem até um cachorro morto ali dentro da sanga. Quando vem enchente, minha casa enche d’água até a parte da frente. As coisinhas que a gente luta pra ter, vem a chuva e estraga tudo. Não dá nem pra mandar arrumar, porque a qualquer momento a gente pode ser expulsa de casa. É tudo incerto.’’
Então, por que não sair destas regiões?
Com tantos perigos e incômodos provocados por permanecer residindo próximo aos trilhos, é possível que se questione por quais motivos as famílias seguem lutando pela moradia nestes locais. E isso se deve principalmente pela falta de amparo do governo para que as pessoas se mudem para outras regiões, conforme relatam os entrevistados. De acordo com eles, nem entidades estatais, nem a concessionária forneceram qualquer tipo de auxílio para a realocação das famílias, inviabilizando a mudança de quem, muitas vezes, só tem a própria residência como bem, como é o caso de Élcio da Silva, aposentado de 74 anos que mora na região próxima à antiga estação férrea de Santa Maria: ‘’eu me sinto apavorado; eu penso ‘como é que eu vou sair daqui pra procurar casa?’, com o valor que tá hoje em dia o aluguel. E aqui eu tenho minha sogra que é velhinha. Eu vou ter que sair correndo com esse pessoal todo”, comenta o aposentado.
Para além da questão financeira, grande parcela de quem corre risco de remoção da casa reside há mais de uma década na área da via férrea. Logo, realocar essas pessoas significa retirá-las das suas rotinas e convívios estabelecidos há anos. Dirceu Rosa mora há 33 anos a cerca de 20 metros de distância dos trilhos, no bairro Camobi. Imagine residir em uma localidade por mais de três décadas, construir laços, trabalhar, viver em uma região e de uma hora para outra precisar deixar seu lar, sem ajuda de nenhuma entidade, nem orientações de para onde ir. Em meio à insegurança, Rosa usa do humor para lidar com a situação: ‘’a grande preocupação é saber onde que eu vou morar; nem embaixo da ponte deixam morar mais [risadas], morar onde?’’
Irmã de Eneas, Niceia Papalia, relata se sentir impotente em relação à situação e afirma que gostaria de seguir morando na região de sua casa: ‘’aqui em Camobi, a gente consulta no postinho [de saúde], trabalha e estuda. E, de repente, querem nos tirar daqui e por lá não sei aonde. O ideal seria ficar por aqui.’’
Na tentativa de evitar que o máximo de famílias tenham que deixar suas casas, o coordenador de Desenvolvimento Regional e Cidadania do ODH, Victor de Carli, reforça que o papel da UFSM é de fornecer o subsídio para se pensar sobre o impacto que essa questão social terá nas famílias afetadas, buscando elencar alternativas para que as desocupações não sejam tão turbulentas: ‘’[devemos pensar] como podemos promover uma reurbanização da cidade, como podemos pensar em contrapartidas sociais para essas pessoas que precisam sair de suas casas; [pensar] como vai ficar a questão do emprego delas, da moradia delas, do acesso delas à cidade como um bem de cidadania básica’’, complementa de Carli. Nesse sentido, a Universidade está pensando nas melhores formas de reinserir estas famílias em outros lugares.
No entanto, o coordenador explica ser necessário um somatório de forças para colaborar com as famílias beira-trilhos, já que esta ainda é uma pauta pouco visibilizada e bastante complexa. Por isso, ele convida os cursos de Arquitetura, Direito e Ciências Sociais a pensar sobre o caso, pois até o momento a AMPF está recebendo o amparo somente do projeto LAMOT.
Qual o futuro dos beira-trilhos?
Alejandro Padillo conta que os estudos de identificação e avaliação de riscos relacionados às ocupações próximas às ferrovias do LAMOT foram iniciados em janeiro de 2023 e, no momento, a equipe está analisando variáveis para determinar os riscos derivados de cada um desses casos. Posteriormente, as informações levantadas pelo LAMOT serão organizadas em um guia técnico, que servirá de auxílio para pesquisas como a que está sendo feita pelo DNIT, de acordo com Padillo.
Junto a isso, a equipe pretende desenvolver e sistematizar uma metodologia de identificação que agregue todas as variáveis, ponderadas de acordo com sua importância, em um índice de risco normalizado que possa ser representado espacialmente, criando, desta forma, um ‘’mapa de risco entorno das ferrovias’’. O coordenador do LAMOT comenta que o projeto também busca divulgar conceitos técnicos como área de domínio e área não-edificante, citados anteriormente, por meio de redes sociais, a fim de que este assunto se torne acessível e de fácil compreensão à população santa-mariense.
Com a finalização deste estudo, prevista para o final de 2024, a expectativa é que o trabalho do DNIT seja agilizado e proponha uma diminuição no número de casas que deverão ser desocupadas, conforme conta Pablo Rocha: ‘’nós queremos justiça para que as famílias tenham paz e garantia do direito’’. O presidente da Associação reforça ainda que não pretende desistir da luta por amparo social às famílias que precisarão ser realocadas. Nesse ínterim, Rocha e os mais de três mil moradores beira-trilhos seguem convivendo com as incertezas de não saber se poderão ou não seguir em suas casas.
Texto: Laurent Keller, acadêmica de jornalismo e voluntária da Agência de Notícias
Fotos: Ana Alicia Flores, acadêmica de Desenho Industrial e bolsista da Agência de Notícias.
Ilustração: Lucas Zanella, acadêmico de Desenho Industrial e estagiário da Agência de Notícias
Edição: Mariana Henriques e Ricardo Bonfanti, jornalistas
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