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Feminismo pode ajudar a ressignificar o amor e combater a violência contra as mulheres

O amor, em suas diversas formas, deveria ser sempre seguro. No entanto, essa não é a realidade para muitas mulheres que enfrentam violência em relacionamentos afetivos, amorosos e sexuais. Diante disso, surge uma pergunta: é indispensável o amor romântico para que as mulheres se sintam amadas?

Essa e outras questões são respondidas no artigo “Amorosas Reflexões: autoestima feminista como recurso para disputas narrativas sobre o amor romântico”, escrito pela professora Vera Martins, do Departamento de Ciências da Comunicação do campus da UFSM de Frederico Westphalen. Com o texto, a autora apresenta a importância das redes sociais para mulheres brasileiras e moçambicanas que compartilham experiências de violência dentro de relacionamentos amorosos. Como descreve no artigo, a pesquisadora estuda “o encontro com a violência nos lugares onde as mulheres foram buscar o amor”.  

Graduada em Relações Públicas, Vera Martins aplica o feminismo em todas as áreas de sua vida. “Eu comecei a ter atitudes feministas muito cedo, por reconhecer o incômodo com a desigualdade. Foi o feminismo que deu nome para as coisas que eu sentia”. Quando participou da ONG ASPA: apoio, solidariedade e prevenção à AIDS, no Vale dos Sinos, teve contato com mulheres teólogas feministas, o que a levou a explorar leituras e conhecer diversas autoras sobre o tema: “Isso me deu um alívio tão grande!”, conta. 

Em sua vida acadêmica, Vera Martins usa ideais feministas. Desde sua graduação até seu doutorado, voltou-se para a comunicação e o feminismo. A docente coordena o projeto “Justiça de Gênero na UFSM”, no qual fazem pesquisas, promovem palestras, capacitações e rodas de conversa sobre as experiências das mulheres no campus de Frederico Westphalen. Além disso, Vera apresenta o programa “Mulheres Primeiro” nas rádios da UFSM, trazendo mulheres da Universidade, sejam elas estudantes, docentes ou técnicas, para compartilhar experiências. 

 A Agência de Notícias da UFSM conversou com Vera Martins para compreender como o amor, a dor e a autoestima feminista podem estar relacionados à superação das violências contra a mulher. Confira a entrevista: 

O que te motivou a escrever um artigo sobre essa temática? 

Ao observar as vidas das mulheres que são objetos da luta social, a gente se dá conta que o campo dos relacionamentos afetivos não está na pauta das nossas reivindicações. Algo que é tão fundamental e tão organizador do ponto de vista das nossas emoções, tão central no modo como a sociedade nos socializa. Nós somos socializadas para ser para o outro, para termos relacionamentos afetivos no centro da nossa vida. Como você vê no artigo, nós temos teóricas produzindo sobre isso. Mas, eu penso que, do ponto de vista da organização das mulheres, nós nos articulamos pouco para colocar isso no centro de uma reivindicação. Porque a Marcela Lagarde, autora mexicana de quem eu gosto muito, diz que ter uma vida amorosa justa, sem violência, é um direito e nós precisamos reivindicar isso. 

A nossa vivência amorosa está diretamente ligada com um conjunto de violências. Nós conseguimos, como mulheres, ocupar cargos de liderança, ser presidenta, CEO de grandes empresas e nós continuamos sofrendo violência dentro de casa. Isso significa que a temática é central na nossa vida e ainda não recebeu o olhar suficiente para a gente começar a pensar como vamos resolver isso.

Como a autoestima se relaciona com o amor e a dor?

A autoestima e o autocuidado estão muito na moda. E isso é um movimento que a Bell Hooks, uma autora importante no feminismo, coloca como “feminismo no estilo de vida”. São pautas dos movimentos feministas que foram apropriadas pelo capitalismo e pelo patriarcado e se esvaziam do potencial transformador. É muito fácil a gente se engajar nisso, e as redes sociais cumprem um papel importante para isso. Por exemplo, eu decido que preciso ter autoestima, preciso cuidar de mim, do meu corpo, minha pele e isso vira uma centralidade. 

Mas, a pergunta difícil é: no que isso transforma as relações que eu vivo? Porque, se a gente não tomar cuidado, vamos performar nessas pautas para dar respostas para o outro. “Eu vou cuidar da minha pele para eu ser mais bonita e ser escolhida em um relacionamento”. Então quando a gente fala sobre a autoestima do ponto de vista feminista, estamos falando sobre algo mais profundo, que busca dar respostas para nós entre mulheres, para que nos fortaleça e que fiquemos menos dependentes do olhar do patriarcado sobre nós. 

A autoestima feminista é diferente da autoesima que é um estilo de vida, usada para a estética. Ela é pensada para fazer com que as mulheres compreendam os processos e percebam que não é individual. Porque eu posso estar com uma pele maravilhosa, mas o modo como a sociedade continua me olhando ainda é de desprezo e de descuido.

Então, quando eu chamo a atenção para autoestima, quero dizer que no campo do feminismo nós temos recursos que nos dão condições de olhar essa narrativa que foi imposta sobre o amor, disputar e dizer: “eu quero uma relação amorosa. Eu quero um namorado, uma namorada. Mas eu quero isso dentro de uma condição de saúde integral da minha vida, de alegria, de liberdade. Não quero que isso esteja atrelado à dor e ao sofrimento”. 

A dor e o sofrimento são normalizados. Se você ouvir músicas românticas, do MPB ao sertanejo, vai ver uma glamourização do sofrimento por amor. E é isso que nós, mulheres, precisamos desmontar. Não é fácil. Eu escrevi o artigo pensando no quanto o feminismo tem repertório para nos ajudar a fazer esse questionamento. 

Existe a construção de que precisamos do amor e estar em um relacionamento para sermos aceitas pela sociedade. Você pensa que isso ainda é muito presente? 

Ainda é muito presente. As mulheres ainda sofrem muito por não estar em um relacionamento afetivo-sexual. Tem uma coisa importante que o feminismo nos diz: o amor é importante, uma vida amorosa é fundamental. Mas a sociedade ocidental e patriarcal hierarquiza a vida amorosa. 

Em primeiro lugar está a vida amorosa de casal, depois a família, depois os amigos. É muito comum vermos mulheres que começam um namoro e se afastam das amigas. Isso é essa hierarquização do amor e é contra isso que a gente precisa lutar.

Não quer dizer que não precisamos do amor. Nós precisamos colocar a ideia do amor de um jeito mais horizontal para enxergar, inclusive, que quem nos salva todos os dias da solidão e do desamparo são outras mulheres. São as nossas amigas, são as mulheres que cuidam dos nossos filhos e filhas quando precisamos trabalhar, é a pessoa que trabalha comigo que sabe o dia que estou com cólica menstrual e me traz um chazinho. 

Nós somos cercadas de amor e cuidado de outras mulheres, mas a gente não costuma enxergar isso como uma vida amorosa. É isso, a partir do feminismo, que quero propor com o artigo: que a gente deixe de hierarquizar as expressões amorosas da nossa vida, que a gente coloque em uma visão mais horizontal, para que não fiquemos dependente de uma dessas expressões amorosas, que é o amor romântico. É importante aprender a olhar para o amor de uma perspectiva mais ampla e reconhecer que recebemos o amor de diversos lugares. O amor romântico é importante, faz muito bem na nossa vida, mas se não temos vivido boas experiências amorosas, a gente precisa reivindicá-las. 

Nesse sentido, qual é a importância de as mulheres compartilharem suas experiências nas redes sociais? 

É fundamental. É um lugar onde eu consigo dizer: “aquela atitude do meu namorado, da minha namorada, do cara que eu encontrei numa festa, não me fez bem, me incomodou”. E ao compartilhar isso nas redes sociais e nas bolhas feministas, você sabe que vai ser acolhida. A outra mulher sabe. Nós sabemos o que é o efeito de um olhar abusivo sobre o nosso corpo. Isso nos dá dimensão coletiva do impacto da violência. Mas, por outro lado, tira aquela voz, lá no fundo, dizendo que o problema é meu, que o problema foi eu ter decidido passar na frente daquele posto de gasolina. Esse compartilhar ajuda a diluir a culpabilização individual. Porque não é individual, é coletivo. E a sociedade e o patriarcado fazem a gente acreditar que a culpa é nossa. 

Aquilo que acontece comigo e contigo é efeito de um projeto social de desprezo contra as mulheres, objetificação. Quando eu compartilho a minha história, recebo essa acolhida das outras mulheres que dizem que isso também já aconteceu com elas. E podemos nos fortalecer em outras narrativas. Porque, se eu acho que o problema é só meu, é muito difícil fazer o enfrentamento. 

As letras de músicas românticas dizem que você quase não sobrevive ao fim de um relacionamento amoroso. Então, eu preciso o tempo todo de lembretes daquelas que são iguais a mim de que eu posso romper um relacionamento. Eu vou sofrer, mas eu vou sobreviver. E para o próximo, talvez, eu esteja mais preparada para reivindicar um relacionamento mais justo comigo. 

As mulheres enfrentam desafios quando compartilham suas histórias? 

Sim, a gente enfrenta desafios. Eu vou voltar ao que a Marcela Lagarde nos diz: “nós somos uma geração de mulheres sincréticas”. Por exemplo, eu tenho 53 anos e fui socializada em um contexto que dava um conjunto de encaminhamentos necessários para a minha vida. Seria legal que eu casasse, tivesse filhos… Depois de um tempo, eu cresci, amadureci enquanto ser humano, e percebi que posso suspeitar dessa narrativa. Então, eu fui atrás de coisas feministas e adquiri uma consciência crítica sobre a vida das mulheres.

Quando eu começo a questionar as coisas sobre o amor, as minhas chances de viver um relacionamento diminuem muito. Se começo a estudar, tenho que reconhecer que vivi relacionamentos abusivos, que sofri violências dentro dos relacionamentos que experimentei. E isso é muito difícil. Então, a gente também precisa ter empatia com as mulheres que, às vezes, não dão conta desse desafio. Porque não é fácil você se deparar com um conjunto de recursos teóricos e sociais que dizem que a vida que você levou antes disso não é o que você pensou. 

Então volta a importância do coletivo das mulheres. Como é que eu dou conta? Onde eu me seguro quando eu descubro que eu passei uma vida vivendo coisas violentas? Quem é que vai segurar a minha mão? Quem é que vai me abraçar pra eu chorar a tristeza de ter vivido um relacionamento que me feriu? Então, esse é o grande desafio. É um desafio individual e que para ser enfrentado precisa do coletivo. 

Muitas vezes, associa-se violência às agressões físicas, mas existem outros tipos de violência. Como essas informações podem chegar às mulheres que não têm tanto acesso?

Esse é um desafio social. É uma questão que não pode ser resolvida só pelas mulheres, é política e de saúde pública. Penso que é o compromisso de mulheres como eu, que tenho uma posição privilegiada em muitos aspectos, desde os econômicos até os emocionais e cognitivos. Nós podemos tensionar os espaços institucionais para oferecer respostas, para que essas informações cheguem a mais mulheres. Se a gente observa dentro da Universidade, existem projetos relacionados às questões de gênero. Porque, institucionalmente, as mulheres fizeram uma reivindicação para que a Universidade tivesse uma política de gênero que desse amparo para essas ações. Esse é o compromisso de quem ocupa esses espaços, abrir mais caminhos. 

E isso não significa que as mulheres que não têm acesso às mesmas coisas que eu não façam os seus movimentos nas condições que elas têm. Por exemplo, é muito fácil para mim fazer leituras teóricas sobre a violência, esse é o meu lugar. Mas as mulheres que não leem e não escrevem artigos, na vida delas estão fazendo enfrentamentos contra violência, estão apoiando umas às outras. A gente precisa abrir os espaços para que essas outras formas de enfrentamento também sejam visíveis.

Quais são os novos valores que estão sendo construídos com tudo isso?

Eu penso que nós estamos dando visibilidade para valores que sempre existiram entre as mulheres: a solidariedade que reconhece as nossas diferenças. A gente se enxerga nas nossas singularidades. Essa compreensão complexa da nossa realidade é algo que viemos fortalecendo, é a visibilidade de que podemos contar umas com as outras. 

E isso vem da visibilidade que as redes sociais deram para algo que já existia. A rede social não expressaria isso se já não fosse uma realidade das mulheres. Para mim, essa é a grande beleza das redes: visibilidade.

Você sente que o feminismo faz diferença em todas as suas relações? 

Faz. O feminismo faz a diferença quando me dá recursos para ler a realidade que me cerca. Nem sempre as coisas que a gente descobre são boas. Eu tenho o direito de ter um relacionamento com um companheiro que me respeite. E por outro lado, eu posso ser uma mulher solteira e isso não significa que a minha vida não tem amor. Eu sempre corrijo as pessoas quando elas falam “ah, mas você é sozinha?” eu digo: “não, eu sou solteira”. Eu tenho muitas pessoas na minha vida, sou cercada de muito amor e carinho. 

O feminismo te protege? 

A Debora Diniz, uma feminista brasileira que discute bioética, diz que o feminismo é o contrário de solidão”. Para mim, é isso. O feminismo me salva todos os dias de ser levada para esse lugar onde eu acreditaria que a culpa é minha. O feminismo me salva de aceitar aquilo que o mundo diz que eu sou ou o que deveria ser e me abre possibilidades. Eu consigo levar uma vida mais plena. Mesmo que não destituída de problemas ou riscos de violências. 

 

Texto: Jessica Mocellin, bolsista da Agência de Notícias

Ilustração:  Maria Eduarda Corrêa, bolsista da Unidade de Comunicação Integrada

Edição: Luciane Treulieb

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