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Professor da UFSM traduz o clássico do teatro grego “Antígona”

CREONTE: E tiveste a ousadia de infringir a lei?

ANTÍGONA: Tive, pois não foi Zeus que a proclamou e nem

a justiça que mora co’os deuses lá embaixo,

que fixaram aos homens as perenes leis.

Não pensei que teus decretos fossem tão fortes

a ponto que um mortal pudesse transgredir

as inescritas e indeléveis leis divinas.

Elas não são de hoje, nem de ontem, são eternas.

E ninguém nunca soube de onde elas vieram.

Crês que, por temer um homem, eu as violaria,

sob a pena de expor-me à justiça divina?

(“Antígona” / Sófocles, vv. 449-459)

Capa do livro lançado em 2022 pela Penguin Companhia

Especulações sobre as leis divinas não escritas e as suas respectivas origens, e de como a sua obediência, em determinadas circunstâncias, pode levar um indivíduo a um confronto mortal com a pólis estão plasmadas, por exemplo, nos diálogos de Platão, particularmente naqueles em que o filósofo relembra o julgamento, acusação e execução do seu mestre, Sócrates, perante o estado ateniense. Esses e outros temas caros às filosofias socrática e platônica já haviam sido antecipados décadas antes pelo teatro grego, e não é improvável que o pai da filosofia fosse ele próprio um espectador entusiasmado das tragédias escritas por seu contemporâneo Sófocles. Entre as mais ilustres delas está Antígona, que é apresentada novamente ao leitor brasileiro pela Companhia das Letras – por meio do selo Penguin Companhia – em uma tradução direta do grego, a cargo do professor Lawrence Flores Pereira, do Departamento de Letras Estrangeiras e Modernas da UFSM.

Trata-se de uma atualização da Antígona lançada em 2006 pela editora Topbooks. Essa tradução, porém, não foi criada originalmente para ser lida em silêncio, mas com a intenção de ser declamada por atores em cena. Esse propósito foi atingido com o espetáculo encenado em 2004 no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, sob a direção de Luciano Alabarse e com produção da professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Kathrin Holzermayr Rosenfield, que é a autora, em ambas as edições mencionadas, tanto da introdução como das notas que acompanham a tradução.

A intenção do espetáculo era trazer para o espectador contemporâneo algo da atmosfera que envolvia a encenação das tragédias, pouco mais de 2.400 anos atrás, durante o período clássico da Grécia. Para tanto, tomou-se a decisão de que o coro deveria não declamar, mas cantar os hinos da peça, assim como faziam os gregos antigos. Traduzidos por Lawrence “em versos livres ritmados”, esses hinos correspondem ao párodo (entre o prólogo e o primeiro episódio), que introduz o coro, e os cinco estásimos, os quais se interpõem entre os cinco episódios (ou atos) e entre o último episódio e o êxodo (parte final da tragédia).

A música inclusive está presente na etimologia da palavra “tragédia”. De acordo com Kathrin, “o termo ‘tragédia’ (do grego antigo tragos + ode [τράγος, cabra/bode, e ᾠδή, música]) sedimentou a memória dos ritos religiosos arcaicos, daquelas ‘canções dos bodes’ proferidas nos desfiles de um coletivo carregando a imagem do deus Dioniso”. No entanto, como não foram conservadas – junto com os textos das peças – partituras que atestem como era o acompanhamento musical do coro, tem-se nas representações modernas das tragédias gregas a liberdade de recriar essa música, valendo-se de imaginação e pesquisa histórica. No caso do espetáculo na capital gaúcha, esse trabalho coube ao compositor Arthur de Faria (cujo trabalho para Antígona está disponível no Spotify).

Na Grécia, as tragédias estreavam em festivais anuais dedicados a Dionísio, nos quais os grandes dramaturgos competiam pelo prêmio de melhor tragédia. Antígona, inclusive, ganhou o prêmio principal no ano de 441 ou 440 a.C. Aquela foi apenas uma das 24 vitórias que Sófocles conquistou nos concursos trágicos, nos quais nunca ficou em colocação inferior à de terceiro lugar. Estima-se que tenha escrito aproximadamente 120 peças. Contudo, os textos completos de apenas sete delas sobreviveram à passagem do tempo.

Capa do disco que Arthur de Faria lançou contendo a música que compôs para o espetáculo encenado em 2004, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre (foto: YB Music/divulgação)

Como a personagem de Antígona é filha de Édipo, pode parecer para o leitor moderno que Antígona seja uma sequência de Édipo Rei (ou Édipo Tirano), outra das mais notáveis tragédias de Sófocles, embora aquela peça tenha vindo a público mais de dez anos antes desta. Aliás, uma nova tradução de Édipo Rei está sendo preparada por Lawrence, para publicação também pela Penguin Companhia. Ambas as tragédias fazem parte da trilogia do ciclo tebano, completada por Édipo em Colono, a última peça escrita por Sófocles, que curiosamente se passa na cidade natal do autor.

Mito – Tanto Édipo quanto Antígona incorporam-se ao mito fundador da cidade de Tebas. A ascendência desses personagens remonta a Cadmo, rei e fundador da cidade. Antes de chegar a Édipo, a árvore genealógica dessa estirpe passa por outros três reis da cidade-estado: Polidoro, Lábdaco e Laio. Este último recebe de um oráculo a profecia de que seria assassinado pelo próprio filho, como punição por Laio ter estuprado Crísipo, filho do rei Pélope, que governava a cidade de Pisa, na região grega de Élide. Para evitar que a profecia se cumpra, Laio ordena então à sua esposa Jocasta que mate o filho que tiveram em conjunto: Édipo. Incapaz de cumprir a ordem por conta própria, a mãe a repassa para um servo, que tampouco a executa, mas leva o pequeno Édipo para uma montanha longe da cidade.

O bebê é resgatado por um pastor, que o entrega em Corinto ao rei Pólibo e à sua esposa Mérope, que não tinham filhos e resolvem adotá-lo. Os anos se passam e o jovem Édipo ouve rumores de que é filho adotivo, e consulta um oráculo sobre isso, que lhe diz apenas que estava destinado a se casar com a mãe e a matar o pai. Com medo de que a profecia se referisse ao casal que o adotou, Édipo foge para Tebas. No caminho, discute com um velho homem desconhecido, sem saber que era o seu pai, Laio; na briga, derruba o velho da carruagem, o que acaba por matá-lo.

Chegando ao seu destino, Édipo derrota uma esfinge que devorava tanto cidadãos tebanos como viajantes que passavam por lá. Ele é assim aclamado rei de Tebas e inadvertidamente se casa com sua mãe, a rainha viúva Jocasta. Ao conhecer o servo que se recusou a matá-lo quando bebê e o pastor que o resgatou, descobre a verdade sobre o incesto e o parricídio. Isso leva Jocasta ao suicídio. Édipo fura os próprios olhos e parte para o exílio.

Sófocles conquistou 24 vitórias nos concursos trágicos atenienses. Uma delas foi com “Antígona” (foto: Brittish Museum)

Filhos(as) de Édipo – “Anti-gone significa anti-, no lugar da (ou contra); gone, a progenitura, marcando assim sua presença como aquela que substitui (a falta de) descendentes de Édipo”, informa a professora Kathrin. Logo nos primeiros versos do prólogo de Antígona, o qual consiste em um diálogo entre a personagem-título e a sua irmã Ismena (ambas frutos do incesto entre Édipo e Jocasta), o leitor (ou o espectador) é informado de que os outros dois irmãos das personagens, Etéocles e Polinices, faleceram em uma guerra vencida pelo exército tebano contra o invasor argivo. Eles disputavam o trono de Tebas e morreram um pela espada do outro, em golpes simultâneos.

Partidário de Etéocles, o general vencedor, Creonte, decreta que o funeral deste deveria receber todas as pompas de estado, enquanto que o cadáver de Polinices – como punição por invadir Tebas, em aliança com um exército estrangeiro – seria simplesmente jogado fora dos muros da cidade, sem enterro, “ouro apetitoso para as aves ávidas de comer entranhas”, na expressão de Antígona. Mesmo sob ameaça de morte, ela realiza o enterro do irmão (inclusive mais de uma vez), com todos os ritos fúnebres exigidos pela religião grega pagã, desafiando assim a ordem do aspirante a tirano.

A palavra “tirano”, no contexto da Grécia antiga, não tem necessariamente uma acepção negativa; é usada para se referir a um governante que, pela própria força, suprime uma dinastia enraizada e a substitui. No caso de Creonte, a situação se complica ainda mais porque seu filho Hêmon é noivo de Antígona. A irredutibilidade dos dois personagens principais por fim acarreta um desenlace que vitima não só a heroína da tragédia, como também o seu noivo e a mãe dele (esposa de Creonte).

No original em grego, os diálogos do prólogo, episódios e êxodo têm como métrica o trímetro iâmbico. Em sua tradução, Lawrence os adaptou em versos dodecassílabos. Ele também passou cerca de um ano revisando a própria tradução (relançada em 2022), em trabalhos de cotejo com o texto original e com outras traduções para o português, bem como para outros idiomas, como o inglês, o francês e o alemão – em particular a tradução do poeta Friedrich Hölderlin, publicada no início do século 19.

Interpretações – Mas por que Antígona e Creonte agiram como agiram? Teria Antígona sido motivada apenas pela busca por justiça? Ou por orgulho familiar ferido? Ou sua atitude estaria mascarando um impulso incestuoso hereditário? E, quanto a Creonte, o que o animava era apenas a sede de poder? Ou queria livrar Tebas dos miasmas trazidos pela dinastia dos labdácidas?

O Teatro de Dionísio, em Atenas, foi onde nasceu o teatro clássico grego (foto: Encyclopædia Britannica)

Nas notas que escreveu para essa tradução da Antígona, a professora Kathrin Rosenfield traz análises minuciosas das atitudes de cada personagem. Isso inclui uma compilação de opiniões célebres que mostram como a peça tem sido interpretada ao longo do tempo. Partindo-se das considerações da Poética de Aristóteles, passa-se pelo classicismo, romantismo e idealismo alemão, com nomes como Goethe, Hölderlin, Kant e Hegel; também pela psicanálise de Freud e Lacan e pelo desconstrucionismo de Derrida, e chega-se até mesmo a interpretações feministas de Antígona, com Judith Butler.

O teatro grego é o símbolo de uma feliz integração do conservadorismo religioso com ousadíssimas inovações sociais e políticas”, conclui Kathrin.

Shakespeare, Sófocles e outros – Fundada em 1935, em Londres, a Penguin Books é uma editora especializada na popularização dos clássicos. Comercializa para o público britânico obras clássicas da literatura (e também de história, filosofia, sociologia, economia e ciência, entre outros temas) a preços acessíveis, no formato de brochura. O proprietário da editora, o conglomerado Penguin Random House, é também, desde 2018, sócio majoritário da Companhia das Letras, o maior grupo editorial do Brasil, que antes disso já comercializava no país obras clássicas com a marca e o formato característico da Penguin.

As traduções do professor Lawrence Pereira têm sido publicadas pela Penguin brasileira. Entre elas se destaca Hamlet, que em 2016 ganhou o Prêmio Jabuti (considerado o maior prêmio literário do país), na categoria tradução. O selo também já publicou outras duas tragédias de Shakespeare traduzidas por ele: Otelo e Rei Lear. Lawrence informa que a Penguin vai publicar também a sua tradução de Macbeth, que inclusive já está pronta, faltando apenas as notas e a introdução.

Lawrence já transpôs para o português obras originalmente escritas em inglês, grego antigo, francês, espanhol e alemão. Além de Shakespeare e Sófocles, ele também já traduziu obras de T. S. Eliot, Barbey d’Aurevilly, Emily Dickinson, Guillaume Appolinaire, Calderón de la Barca, Friedrich Hölderlin, Charles Baudelaire e Wallace Stevens, entre outros escritores.

Texto: Lucas Casali

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